Foto: Douglas Mansur/RBA |
Os
agentes de tortura, terrorismo de Estado e autores de crime contra a humanidade
não podem se beneficiar da Lei de Anistia (Lei 6.683/1979) e devem ser punidos.
Foi com esta sentença que o Estado brasileiro foi mais uma vez condenado por
sua omissão diante da impunidade dos crimes cometidos pela Ditadura Militar.
A
decisão foi unânime entre os sete jurados presentes no 3º Tribunal Tiradentes,
realizado ontem em São Paulo, e se soma a condenação do País, em 2010, pela
Corte Interamericana de Direitos Humanos, integrante da OEA (Organização dos
Estados Americanos).
Há 4
anos, a corte internacional responsabilizou o Estado pelo desaparecimentoforçado de 62 pessoas, entre os anos de 1972 e 1974, na repressão a Guerrilha
do Araguaia. Com isso, a OEA determinou: “os dispositivos da Lei de Anistia são
incompatíveis com a Convenção Americana, carecem de efeitos jurídicos e não
podem continuar representando um obstáculo para a investigação dos fatos”.
No
tribunal realizado ontem, o cumprimento da decisão da OEA foi reivindicado
pelas testemunhas de acusação arroladas pelo jurista Fábio Konder Comparato. O
acusador apontou ainda que não há possibilidade de anistia ou prescrição para a
prática de terrorismo de Estado, definida por ele como “o aniquilamento da
oposição para instalar um clima de terror junto à sociedade”.
Comparato
questionou também a legitimidade da ‘auto-anista’, uma vez que foi concedida
pelo Estado a si mesmo. “Não é possível, nos casos de terrorismo de Estado, que
se possa reconhecer a impunidade, porque a principal vítima é a humanidade. E
nenhum Estado representa a humanidade”, frisou.
O
Promotor Público Marlon Weichert, testemunha de acusação, declarou ainda que a
anistia aos agentes públicos perpetradores de graves violações aos direitos
fundamentais e humanos é inconstitucional: “Tortura, execução sumária,
violência sexual e desaparecimento forçado”, enumerou, disparando: “uma lei
garantidora da impunidade destes crimes afronta diretamente diversos princípios
da Constituição brasileira”.
A
representante da testemunha pela Comissão de Familiares de Mortos e
Desaparecidos Políticos, Amelinha Teles, destacou também que as violações se
sobrepõem numa densa lista de graves crimes: “cada desparecido da Ditadura
representa a prática dos crimes de sequestro, tortura, assassinato e ocultação
de cadáver”, frisou, lembrando que há ao menos 437 nomes nesta lista,segundo o Dossiê dos Mortos e Desaparecidos Políticos.
Ao
desembargador Antonio Carlos Malheiros coube a tarefa de realizar a defesa da
interpretação dada a Lei. O advogado fundamentou sua argumentação no risco de
insegurança jurídica que a revisão da Lei de Anistia poderia gerar, uma vez que
o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu por sua manutenção tal comoestá em 2010.
A
defesa, entretanto, não foi suficiente para convencer um só jurado no decorrer
do Tribunal, que durou pouco mais de três horas. Assim, a corte presidida pelo
jornalista Juca Kfouri, proferiu sua sentença: “não podem ser beneficiados pela
Lei 6.683/1979 todos os autores de crimes contra a humanidade, tais como
homicídio, tortura, estupro, seqüestro, desaparecimento forçado, ocultação e
destruição de cadáveres de oponentes políticos”.
A
decisão atinge não só autores de tais crimes, como também todos os agentes
estatais que planejaram, ordenaram ou auxiliaram a perpetração das violações,
por ação ou omissão. A condenação se estende ainda aos dias atuais:
responsabiliza todos integrantes de órgãos públicos dos poderes executivo,
legislativo e judiciário que seguem descumprindo a sentença da OEA.
Ato simbólico reivindica ação do Estado
Embora
o Tribunal realizado ontem não tenha valor jurídico, o ato simbólico busca
mobilizar a sociedade para cobrar a enorme dívida do Estado brasileiro com a
verdade e a justiça no mês em que golpe militar completa 50 anos. A intenção é
que a iniciativa motive medidas reais no sentido da sentença proferida.
“Estamos
fazendo um julgamento simulado de um aspecto específico da Lei de Anistia: o
artigo 1º, parágrafo 1º, que estendeu a anistia também aos agentes do Estado. A
questão discutida aqui é a seguinte: os integrantes do aparelho da repressão
política podem continuar sendo beneficiários da Lei de Anistia?”, explicou o
ex-deputado federal Luiz Eduardo Greenhalgh, advogado de presos políticos na
época, que abriu o evento.
Ao
final do julgamento simulado, uma cópia da sentença – que congrega a
reivindicação das dezenas de entidades e centenas de pessoas que lotaram o TUCA
(Teatro da Universidade Católica) – foi entregue ao padre Julio Lancelotti, que
assumiu o compromisso de repassá-la ao papa Francisco.
Outra
cópia foi entregue à representante da Comissão Nacional da Verdade (CNV) no
evento, a psicanalista Maria Rita Kelh, buscando que a revogação o artigo 1º
conste nas recomendações que a instância deve incluir em seu relatório até o
fim do ano.
Kehl
assumiu publicamente o compromisso de endossar a reivindicação junto à Comissão
Nacional. “Eu sei o que é a insegurança de uma sociedade inteira que sente que
não pode confiar nos agentes do Estado destinados a protegê-la.Tenho a
esperança de que, se essa sentença for cumprida, o País inteiro vai se sentir
mais seguro, porque estará declarado, finalmente, que ninguém está acima da
lei”, disse.
Além
disso, o ato reivindicou que Projeto de Lei 573/ 2011, de autoria da deputada
federal Luiza Erundina (PSB-SP), seja desengavetado e aprovado no Congresso
Nacional. Erundina também participou do ato como testemunha de acusação e
apontou: “Se foi o Legislativo que aprovou essa lei, esse mesmo Poder também
tem a prerrogativa de rever essa decisão. Mas, sem pressão política, este
projeto não andará”. O PL está parado na Comissão de Justiça e Cidadania da
Câmara sem previsão de voltar a pauta.
A impunidade também condena
Enquanto
o País segue descumprindo a sentença da OEA, os presentes lembraram ainda que a
impunidade também condena, uma vez que impõe à sociedade brasileira a
convivência com os tristes legados da Ditadura Militar, sobretudo os
assassinatos e violências que ainda são cometidos pelas forças de segurança do
Estado.
O
deputado estadual Adriano Diogo (PT), que preside a Comissão da Verdade do
Estado de São Paulo “Rubens Paiva”, elencou no seu ‘testemunho’: “Concordar com
a atual interpretação da lei é concordar que os boletins de ocorrência da PM
continuem a ser preenchidos como resistência seguida de morte. É concordar com
o genocídio dos indígenas, camponeses e trabalhadores rurais. É concordar com
todas as chacinas e grupos de extermínio das polícias militares do Brasil,
inclusive arrastando cidadãos pelas ruas em viaturas [caso da carioca Cláudiada Silva Ferreira]”
O
secretário municipal de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo, Rogério
Sottili, também usou seu ‘testemunho’ para lembrar a ligação dos crimes do
passado com a crescente mortalidade de jovens negros e da periferia,
especialmente por homicídios cometidos pela polícia.
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