Por Sérgio Sérvulo da Cunha
É
tão difícil, agora, prever a dimensão e evolução dos
acontecimentos, quanto era, há um mês, prever a eclosão desses
protestos.
Engana-se
quem espere, da suspensão dos aumentos, o fim dessa erupção
vulcânica. Engana-se qualquer autoridade, seja da Casa Civil do
Planalto, seja da Prefeitura de São Paulo, que fale em desoneração
de tributos incidentes sobre a prestação desses serviços, ou que
fale em exibição de planilhas por parte das empresas
permissionárias de transporte: o transporte urbano não pode ser
fonte de lucro.
Mas
também se engana quem pretenda reduzir, a amplitude desse movimento,
a reivindicações tópicas. Em todos esses casos patenteia-se a
falta de sensores capazes de medir o nível da insatisfação
popular.
Não
seria atestado de sensibilidade supor que o problema está, tão
somente, na falta de uma política pública de transportes (todos
sabemos que as empresas de transporte estão entre os principais
financiadores das campanhas eleitorais de vereadores e prefeitos).
Onde
escrevi “insatisfação”, poderia ter escrito “sofrimento”.
Mas, a partir de uma tradição elitista, nos acostumamos a crer que
a paciência popular não tem limites. Um movimento aparentemente sem
lideranças, abraçando o mote das tarifas, provocou esse
transbordamento difícil de conter, face ao qual emergem algumas
certezas.
A
Constituição diz, é verdade, que todo poder emana do povo, e será
por ele exercido, diretamente ou por meio de representantes. Contudo,
quando aí se escreve “diretamente”, não se está pensando em
comícios populares, mas nos instrumentos da democracia direta: o
plebiscito, o referendo, o recall, etc. Fora desses casos, é com o
poder constituinte que se exerce diretamente a soberania popular:
promulgada a Constituição, o povo passa a atuar politicamente
mediante os canais que para isso reservou: partidos e representantes
eleitos.
A
atual conjuntura, a cujas preliminares assistimos, é revolucionária
porque, indo às ruas, o povo mostra a distância que se pôs entre
ele e as instituições. Durante a ditadura dizia-se que era preciso
franquear o abismo entre o povo e o governo. E isso continua
acontecendo; o povo protesta nas ruas porque não encontra, seja nas
agremiações políticas, seja nos órgãos de representação, quem
ouça e repercuta sua voz. Pelas mãos de seus proprietários,
faliram os partidos; e, com eles, a representação: é a si mesma, a
seus interesses, e aos interesses dos seus financiadores, que a
classe política atualmente representa. Beneficiária desse sistema,
ela não permite que se faça o indispensável: a reforma que
transforme os partidos em canais autênticos da representação, e
que propicie, aos parlamentares, a independência que perderam.
Por
enquanto, alguns sinais de que podemos nos orgulhar: o poder de
mobilização das redes sociais; a vitória, sobre a violência, de
um pacifismo tão pugnaz quanto lúcido; a derrota do individualismo
quotidiano, frente à solidariedade e ao altruísmo. Em ano
pré-eleitoral, o povo passa a ditar a agenda política, e sublinha o
primado do seu protagonismo.
Sérgio
Sérvulo da Cunha é advogado e filósofo. Autor de várias obras e
artigos jurídicos, foi Procurador do
Estado de São Paulo, Chefe de Gabinete do Ministério da Justiça do
Dr. Márcio Thomaz Bastos, além de Professor de
Direito Constitucional e Vice-prefeito do Município de Santos – sua
cidade natal.
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