quinta-feira, 29 de agosto de 2019

HOJE EU FUI CENSURADO EM UM PONTO DE CULTURA



Inacreditável, metade das participantes eram apoiadoras de Bolsonaro e não queriam a minha presença, mesmo tendo o convite partido deles.

Há mais de uma década, quando eu estava como secretário da Cidadania Cultural, no extinto MinC, conheci o trabalho delas, as incentivei a tornarem-se Ponto de Cultura. Participaram de edital de seleção, foram aprovadas e receberam recursos que permitiram que estruturassem o trabalho; foi a única vez que puderam contar com verba federal. Nunca, jamais perguntamos qual era a orientação política delas, ou lhes foi pedido qualquer tipo de apoio além de retribuírem à comunidade o apoio federal que recebiam. Como fizemos com todos os 3.500 Pontos de Cultura, espalhadas por 1.100 municípios, sempre receberam tratamento republicano e respeitoso.

Os anos passaram e fui acompanhando o trabalho à distância; quando perguntado dava boas referências, nada além disso, nada demais, nada diferente do que fiz e faço em relação a tantos Pontos de Cultura espalhados pelo Brasil, também pela América Latina. há algumas semanas fui convidado a participar de um debate neste local, aceitei e fui graciosamente, sem nada cobrar, viajando de São Paulo a Campinas em meu próprio veículo. Ir a Campinas sempre é bom, minha cidade natal, em que vivem meus pais e nasceram minhas filhas. Qual minha surpresa, quando ontem ligam para mim, pedindo para que eu não falasse do Bolsonaro ou de política no debate. Respondi que o convite partiu deles e que sempre que vou a um debate sobre cultura, falo sobre cultura. E cultura envolve ética, estética, ecologia, afetos, arte…; era disso que eu falaria, como acontece em centenas de conferências que realizo pelo Brasil e pelo mundo. Nos últimos anos, mais pelo mundo que pelo Brasil.

Quando cheguei, o ambiente era de constrangimento. Poucas pessoas presentes e novamente a recomendação para que não falasse de “política”. Como se eu tivesse ido para lá com intuito específico de falar sobre esse estrupício que ocupa a presidência – rs. Eu fui para falar de arte, de cultura, de ideias e filosofia, mais especificamente sobre o lúdico e as brincadeiras infantis, tema que estudo há anos e tenho livro sobre o assunto. Foram delicadas, eram senhorinhas, mas que horror! Eu estava sendo censurado por um Ponto de Cultura, antes mesmo do debate começar.

Respondi que preferia desmarcar e ir embora. Afinal, “quando se entra em uma sala e há dez nazistas, ou você se retira imediatamente, ou logo haverá onze nazistas na sala”, e eu não queria estar presente numa sala daquelas. Antes de me retirar, porém, criei uma história infantil e disse para a coordenadora que havia preparado para o debate, já que a especialidade delas é cultura da infância.
Comecei a contar a história, já na porta de saída:

“Era uma vez, em um reino não tão distante, um homem que queria ser rei, e uma gente que o via como rei. Queriam tanto que ele fosse rei que esqueciam-se de todas as regras básicas de convivência e civilidade. Tinham muito ódio e amargura no coração. E assim desejavam construir o seu reino: com ódio e amargura. Detestando todos os que pensavam e agiam de forma diferente, censuravam e perseguiam pessoas.

Queriam um reino, não para construir, mas para destruir, queimar, matar. Até o sinal da cruz, que faziam antes, em respeito ao antigo Deus que havia sido morto sob tortura, havia sido substituído por um sinal de arma com a mão, em homenagem ao novo Deus.

Nesse lugar, que eles queriam transformar em reinado, havia uma floresta exuberante. A detestavam, assim como detestavam os habitantes da floresta, indígenas, caboclos, as onças, os papagaios e periquitos, também detestavam os macacos e as araras. Consideravam as árvores coisa inútil, a ser derrubada para dar lugar a pasto, plantações e garimpos. Para agilizar seu intento, foram amordaçando as pessoas responsáveis pela conservação da floresta, perseguindo cientistas, ambientalistas.
E bradavam: a floresta é nossa, faremos dela o que quisermos! Agora o reino é nosso!

Até que puseram fogo na floresta. Criaram um dia em homenagem ao homem que queria ser rei: o dia do fogo! Foi fogo para todos os lados. A floresta ardia em chamas. E os bichos que a habitavam eram todos queimados, junto com as árvores. Macaquinhos saiam pulando com os pelos em brasa, um tamanduá abria os braços em desespero, já com os olhos cegados pelo fogo, araras, periquitos e jandaias, voavam com as penas queimando.

Mas lá, naquele lugar tão idílico, havia um Ponto de Cultura que se dizia ECO, que construía brinquedos e se fazia de bondoso, mas que, no fundo, por omissão, cumplicidade ou apoio, fazia coro aos que urravam: Queima! Taca fogo! Mata!”

É isso que significa a normalização dos absurdos que estamos vivendo no Brasil, por mais gentis que pareçam ser as senhoras que nos recepcionam. Terminei de contar a história e fui embora.
Mas, ao dar um passo, decidi contar outra história. Em pensamento rápido, imaginei uma forma de finalizar minha participação na porta daquele Ponto. Até porque foi naquela porta que me disseram que muitas estavam insatisfeitas com minha presença por eu haver trabalhado com o ex-presidente Lula. Como aquelas senhorinhas diziam gostar tanto da cultura infantil, escolhi a história do herói do Mito delas. Contei assim:

“Era uma vez, um herói. O herói do herói delas. O nome dele era Ustra e ele combatia perigosos comunistas. Vivia nos porões, a defender “cidadãos de bem”. Certa vez ele buscou duas criancinhas, uma menina e um menino, ela com cinco anos e ele com três. Levou-os para passear no porão e, colocando-as no colo, fez com que assistissem os pais sendo torturados.”

Já que se dizem cidadãs de bem, defensoras da ecologia e das crianças, resolvi brindá-las com a ampliação do repertório e sugeri para que contassem para as próximas turmas de crianças que recebem, junto com a história da floresta queimada. Ainda disse: Se quiserem posso dar mais alguns detalhes da sessão de tortura, também de como esse “herói” gostava de introduzir camundongos na vagina das moças que torturava.

E fui embora, para não mais voltar.

Na volta, de Campinas para São Paulo, na estrada, fiquei pensando se seria o caso de registrar esse infeliz momento. Eu sou convidado para ministrar conferências pelo mundo todo, tenho encontros com governos das mais variadas orientações políticas, presidentes de repúblicas, ministros, prefeitos, governadores, converso com empresários, tive vários encontros com o Papa Francisco. Sempre buscando convergências pelo bem comum. Mas nunca me vi numa situação dessas, sendo censurado antes de iniciar um debate, ainda mais em minha cidade de origem!

O Brasil vive tempos horríveis, mas pior que a opressão dos poderosos, é a assimilação da opressão em nosso cotidiano, banalizando o mal. Mas vamos resistir!

Para quem se sente fraquejando, adoecendo por viver em uma sociedade doente, deprimido por conviver com tanta estupidez, aturdido em meio a tantos absurdos, tanto cinismo, tanta mentira, deixo a lembrança mais que necessária para os dias atuais: a vida nos pede coragem!

PS – Preferi não expor o nome do Ponto de Cultura, elas sabem o que fizeram e isso basta, quem sabe até reflitam sobre as historinhas infantis que lhes contei. E os demais Pontos de Cultura sabem que não generalizo e que confio que ainda vai brotar um Brasil generoso depois desses tempos de maldade, porque “essa ciranda não é minha só, ela é de todos nós, de todos nós!”


Célio Turino é historiador e escritor.

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