Inacreditável, metade das
participantes eram apoiadoras de Bolsonaro e não queriam a minha presença,
mesmo tendo o convite partido deles.
Há mais de uma década, quando eu
estava como secretário da Cidadania Cultural, no extinto MinC, conheci o
trabalho delas, as incentivei a tornarem-se Ponto de Cultura. Participaram de
edital de seleção, foram aprovadas e receberam recursos que permitiram que
estruturassem o trabalho; foi a única vez que puderam contar com verba federal.
Nunca, jamais perguntamos qual era a orientação política delas, ou lhes foi
pedido qualquer tipo de apoio além de retribuírem à comunidade o apoio federal
que recebiam. Como fizemos com todos os 3.500 Pontos de Cultura, espalhadas por
1.100 municípios, sempre receberam tratamento republicano e respeitoso.
Os anos passaram e fui
acompanhando o trabalho à distância; quando perguntado dava boas referências,
nada além disso, nada demais, nada diferente do que fiz e faço em relação a
tantos Pontos de Cultura espalhados pelo Brasil, também pela América Latina. há
algumas semanas fui convidado a participar de um debate neste local, aceitei e
fui graciosamente, sem nada cobrar, viajando de São Paulo a Campinas em meu
próprio veículo. Ir a Campinas sempre é bom, minha cidade natal, em que vivem
meus pais e nasceram minhas filhas. Qual minha surpresa, quando ontem ligam
para mim, pedindo para que eu não falasse do Bolsonaro ou de política no
debate. Respondi que o convite partiu deles e que sempre que vou a um debate
sobre cultura, falo sobre cultura. E cultura envolve ética, estética, ecologia,
afetos, arte…; era disso que eu falaria, como acontece em centenas de
conferências que realizo pelo Brasil e pelo mundo. Nos últimos anos, mais pelo
mundo que pelo Brasil.
Quando cheguei, o ambiente era de
constrangimento. Poucas pessoas presentes e novamente a recomendação para que
não falasse de “política”. Como se eu tivesse ido para lá com intuito
específico de falar sobre esse estrupício que ocupa a presidência – rs. Eu fui
para falar de arte, de cultura, de ideias e filosofia, mais especificamente
sobre o lúdico e as brincadeiras infantis, tema que estudo há anos e tenho
livro sobre o assunto. Foram delicadas, eram senhorinhas, mas que horror! Eu
estava sendo censurado por um Ponto de Cultura, antes mesmo do debate começar.
Respondi que preferia desmarcar e
ir embora. Afinal, “quando se entra em uma sala e há dez nazistas, ou você se
retira imediatamente, ou logo haverá onze nazistas na sala”, e eu não queria
estar presente numa sala daquelas. Antes de me retirar, porém, criei uma
história infantil e disse para a coordenadora que havia preparado para o
debate, já que a especialidade delas é cultura da infância.
Comecei a contar a história, já
na porta de saída:
“Era uma vez, em um reino não tão
distante, um homem que queria ser rei, e uma gente que o via como rei. Queriam
tanto que ele fosse rei que esqueciam-se de todas as regras básicas de
convivência e civilidade. Tinham muito ódio e amargura no coração. E assim
desejavam construir o seu reino: com ódio e amargura. Detestando todos os que
pensavam e agiam de forma diferente, censuravam e perseguiam pessoas.
Queriam um reino, não para
construir, mas para destruir, queimar, matar. Até o sinal da cruz, que faziam
antes, em respeito ao antigo Deus que havia sido morto sob tortura, havia sido
substituído por um sinal de arma com a mão, em homenagem ao novo Deus.
Nesse lugar, que eles queriam
transformar em reinado, havia uma floresta exuberante. A detestavam, assim como
detestavam os habitantes da floresta, indígenas, caboclos, as onças, os
papagaios e periquitos, também detestavam os macacos e as araras. Consideravam
as árvores coisa inútil, a ser derrubada para dar lugar a pasto, plantações e
garimpos. Para agilizar seu intento, foram amordaçando as pessoas responsáveis
pela conservação da floresta, perseguindo cientistas, ambientalistas.
E bradavam: a floresta é nossa,
faremos dela o que quisermos! Agora o reino é nosso!
Até que puseram fogo na floresta.
Criaram um dia em homenagem ao homem que queria ser rei: o dia do fogo! Foi
fogo para todos os lados. A floresta ardia em chamas. E os bichos que a
habitavam eram todos queimados, junto com as árvores. Macaquinhos saiam pulando
com os pelos em brasa, um tamanduá abria os braços em desespero, já com os
olhos cegados pelo fogo, araras, periquitos e jandaias, voavam com as penas
queimando.
Mas lá, naquele lugar tão
idílico, havia um Ponto de Cultura que se dizia ECO, que construía brinquedos e
se fazia de bondoso, mas que, no fundo, por omissão, cumplicidade ou apoio,
fazia coro aos que urravam: Queima! Taca fogo! Mata!”
É isso que significa a
normalização dos absurdos que estamos vivendo no Brasil, por mais gentis que
pareçam ser as senhoras que nos recepcionam. Terminei de contar a história e
fui embora.
Mas, ao dar um passo, decidi
contar outra história. Em pensamento rápido, imaginei uma forma de finalizar
minha participação na porta daquele Ponto. Até porque foi naquela porta que me
disseram que muitas estavam insatisfeitas com minha presença por eu haver
trabalhado com o ex-presidente Lula. Como aquelas senhorinhas diziam gostar
tanto da cultura infantil, escolhi a história do herói do Mito delas. Contei
assim:
“Era uma vez, um herói. O herói
do herói delas. O nome dele era Ustra e ele combatia perigosos comunistas.
Vivia nos porões, a defender “cidadãos de bem”. Certa vez ele buscou duas
criancinhas, uma menina e um menino, ela com cinco anos e ele com três. Levou-os
para passear no porão e, colocando-as no colo, fez com que assistissem os pais
sendo torturados.”
Já que se dizem cidadãs de bem,
defensoras da ecologia e das crianças, resolvi brindá-las com a ampliação do
repertório e sugeri para que contassem para as próximas turmas de crianças que
recebem, junto com a história da floresta queimada. Ainda disse: Se quiserem
posso dar mais alguns detalhes da sessão de tortura, também de como esse
“herói” gostava de introduzir camundongos na vagina das moças que torturava.
E fui embora, para não mais
voltar.
Na volta, de Campinas para São
Paulo, na estrada, fiquei pensando se seria o caso de registrar esse infeliz
momento. Eu sou convidado para ministrar conferências pelo mundo todo, tenho
encontros com governos das mais variadas orientações políticas, presidentes de
repúblicas, ministros, prefeitos, governadores, converso com empresários, tive
vários encontros com o Papa Francisco. Sempre buscando convergências pelo bem
comum. Mas nunca me vi numa situação dessas, sendo censurado antes de iniciar
um debate, ainda mais em minha cidade de origem!
O Brasil vive tempos horríveis,
mas pior que a opressão dos poderosos, é a assimilação da opressão em nosso
cotidiano, banalizando o mal. Mas vamos resistir!
Para quem se sente fraquejando,
adoecendo por viver em uma sociedade doente, deprimido por conviver com tanta
estupidez, aturdido em meio a tantos absurdos, tanto cinismo, tanta mentira,
deixo a lembrança mais que necessária para os dias atuais: a vida nos pede
coragem!
PS – Preferi não expor o nome do
Ponto de Cultura, elas sabem o que fizeram e isso basta, quem sabe até reflitam
sobre as historinhas infantis que lhes contei. E os demais Pontos de Cultura
sabem que não generalizo e que confio que ainda vai brotar um Brasil generoso
depois desses tempos de maldade, porque “essa ciranda não é minha só, ela é de
todos nós, de todos nós!”
Célio Turino é historiador e escritor.
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