Militante defensor dos Direitos Humanos junto à Comunidades de Base e Pastorais Sociais.
Eu conheci D. Paulo quando estava preso no presídio do Hipódromo. Dom Paulo Evaristo foi nos visitar dentro da cela, ele estava acompanhado de Hélio Bicudo, e nós entregamos a eles documentos sobre a tortura. Eu me lembro deles os esconderem por debaixo da roupa. Estávamos cercadíssimos, mas conseguimos passar as preciosas informações.
Munido desses papéis, e de outros documentos que retirou no presídio Tiradentes, Dom Paulo fez uma denúncia a entidades internacionais e divulgou a tortura que era realizada no Brasil para o mundo inteiro. Isso foi em agosto de 1973. Eu não sabia, mas D. Paulo já havia salvado a minha vida.
Fui preso no dia 17 de março, dois dias após a prisão do meu colega Alexandre Vannucchi. Ele foi morto no dia em que fui preso. Naqueles mesmos dias mataram outro amigo nosso, Gerardo Magela, estudante do 5º ano de medicina da PUC de Sorocaba. Fiquei 90 dias em uma cela solitária. Queriam que eu delatasse Alexandre Vannucchi e Gerardo Magela para incriminá-los, mesmo depois de mortos.
Quando jogaram o corpo de Alexandre Vannuchi na Rua João Boemer, no bairro do Brás, e disseram que o estudante havia fugido e que, em uma tentativa de suicídio, um caminhão o atropelara, um grupo de mais de 20 representantes de diretórios acadêmicos da USP procurou Dom Paulo para denunciar o assassinato.
O Cardeal também não aceitou essa versão de suicídio e se comprometeu em fazer uma missa em memória do estudante. Celebrada na Catedral da Sé, em 30 de março de 1973, a missa reuniu mais de 3 mil pessoas. No dia, D. Paulo pregou: “Os gritos, a tortura e a morte do rapaz foram testemunhados por alguns presos que depois prestaram depoimentos contando o que viram. A violência, talvez, tenha sido maior, pois Leme não denunciou ninguém. Uma das frases que marcaram sua morte, e que foi ouvida por quem estava nas celas vizinhas, foi esta ‘Meu nome é Alexandre Vannucchi Leme. Me acusaram de ser da ALN (Ação Libertadora Nacional). Eu só disse meu nome’”. Como relata a obra O Cardeal da Resistência, de Ricardo Carvalho. A ALN foi o grupo de revolucionários que detiveram Charles Burke Elbrick, embaixador dos Estados Unidos.
Aquela missa foi importantíssima, foi um marco. Foi a primeira vez que a igreja católica não reconheceu uma versão de suicídio da ditadura.
A situação dos presos do Tiradentes era muito grave, todos estavam em greve de fome, e a tortura e as execuções eram constantes. Se eu estou vivo hoje, foi graças a esta atitude corajosa de D. Paulo Evaristo. Depois disso, o nível de tortura diminuiu muito no presídio. Não pararam de matar, mas pelo menos com as pessoas ligadas a Vannucchi, a tortura diminuiu. Eram mais de 100 estudantes presos: da geologia, da história, da psicologia, da comunicação.Naquela sexta-feira, 30 de março, embora não soubéssemos o motivo, ouvimos o Major Carlos Alberto Brilhante Ustra e toda a operação bandeirante, enlouquecida, bradejar contra D. Paulo.
D. Paulo estava sempre disposto a sair em defesa de todos os que precisassem e que a ele recorressem. Em 31 de outubro de 1975, junto ao rabino Henry Sobel e ao Reverendo James Wright, o Cardeal celebrou o culto ecumênico em memória de Vladimir Herzog. Mais uma vez D. Paulo não aceitou uma versão de suicídio da ditadura, mesmo Vlado sendo judeu. Em outubro de 1979, o metalúrgico Santo Dias, líder sindical, foi morto na capela do Socorro. Na companhia de Dom Angélico Bernardino, D. Paulo foi até o instituto Médico Legal e gritou “Vocês são uns covardes, vocês atiraram pelas costas”. Colocou o dedo no buraco da bala e rezou um pai nosso. Essas são só algumas das histórias de D. Paulo.
Missões como essas renderam ao Cardeal 46 fichas no DOPS, para acompanhar suas ações “subversivas”. O prontuário de número 5053 foi aberto no dia 9 de novembro de 1970, apenas 8 dias após sua posse como Arcebispo de São Paulo. D. Paulo sempre deixou claro o seu lado, assim que assumiu o cargo de arcebispo da cidade, ele vendeu o Palácio Episcopal por 5 milhões de dólares; com o dinheiro construiu 1.200 centros comunitários na periferia. Depois que saí da prisão fui visitar D. Paulo, ele me encorajou a continuar o meu trabalho e não desistir.
Foi ele quem me encaminhou para o bispo D. Luciano Mendes de Almeida que atuava na Zona Leste. Foi assim que ingressei no movimento operário, na Oposição Sindical Metalúrgica, e na Pastoral da Moradia, trabalhando com cortiços na Mooca e no Brás. Desde então eu virei um aluno dele, quase um discípulo. Foi por ele que fui para a rua. Eu era um militante comum, ligado principalmente ao movimento estudantil, mas depois que o D. Paulo nos ajudou eu mergulhei nesse mundo, o mundo da luta pelos direitos humanos.
Tortura, nunca mais?
O Cardeal salvou mais que vidas. Ainda no período do regime de exceção, em 1983, D. Paulo e o pastor Jaime Wright deram início ao projeto que seria uma das maiores referências históricas do período, o “Brasil: nunca mais”. A obra reúne documentos e relatos da repressão política no país, durante a ditadura militar.
O livro, com redação de Ricardo Kotscho, Frei Betto e Paulo Vannucchi, e colaboração dos advogados Luis Eduardo Greenhalg e Eny Moreira, foi publicado em 1985. O período já era outro, marcado pelo início das Diretas Já, mas, até hoje, o Brasil: nunca mais, é um dos materiais mais ricos sobre a Ditadura. Por muito tempo, foi uma das únicas bibliografias que denunciavam as violações do período. Mais recentemente, em 2013, a obra e as mais de 900 mil páginas de processos e relatórios que serviram de base para ela, foram digitalizados e estão abertos à população.
O processo de abertura de documentos e de exposição à população teve como importante aliada a Comissão Nacional da Verdade, instituída em 16 de maio de 2012, e suas subcomissões nos âmbitos estaduais e municipais, que foram um passo essencial para apurar as violações de Direitos Humanos sofridas entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988. Mas, de longe, é o suficiente.
Vivemos até hoje as consequências dos aparatos de repressão criados na ditadura e herdados e reproduzidos pelos governos democráticos. O que é o genocídio da juventude negra, se não a herança dos esquadrões da morte de Fleury?
A tortura não acabou, ela continua nas delegacias e é usada como contenção social, atingindo quase que exclusivamente cidadãos de baixa renda supostamente suspeitos. Em maio de 2014, a Anistia Internacional realizou uma pesquisa em 21 países, o resultado? 80% dos entrevistados no Brasil alegaram ter medo de tortura policial, o país liderou o ranking. Na época, o número de denúncias dos atos cometidos por agentes do governo no país havia crescido 129%.
As maiores vítimas são os jovens negros das periferias. Em 2012, a Anistia Internacional fez outra pesquisa e relatou: 56.000 pessoas foram assassinadas no Brasil naquele ano, destas, 30.000 eram jovens entre 15 e 29 anos e, desse total, 77% negros. A maioria dos homicídios é praticado por armas de fogo, e menos de 8% dos casos chegam a ser julgados.
Como se não bastasse essa verdadeira chacina na periferia, vemos agora os parlamentares em vias de aprovar o rebaixamento da idade penal. Sob o pretexto de que a redução trará mais segurança – argumento esse desmentido por todas as entidades especializadas -, e servindo unicamente aos interesses econômicos, mais uma vez nossa juventude é colocada como algoz, inimiga da população, e não como vítima.
Falta à nossa juventude e a nossa sociedade uma voz como a de D. Paulo. As pastorais da juventude e da criança foram fundamentais e hoje estão enfraquecidas. O setor progressista e de caráter social da igreja está fragilizado.
A mesma igreja que criou a Teologia da Libertação em 1968 e que foi um dos maiores símbolos de resistência da ditadura. A mesma Igreja que com as Comunidades Eclesiais de Base e as chamadas Ações Missionárias, estava presente nas periferias, dando formação política e religiosa. A igreja do Cardeal dom Paulo Evaristo Arns.
Dom Paulo era o símbolo da igreja da resistência, da igreja do povo, da igreja popular, e foi o primeiro a ser punido e afastado com o avanço do conservadorismo. O Vaticano interviu e D. Paulo deixou de ser Cardeal, e junto de sua saída desmembrou toda a arquidiocese de São Paulo, afastando todos os bispos ligados a ele.
D. Paulo completa em setembro deste ano, 94 anos. E, embora com dificuldades de locomoção e saúde frágil, ainda é uma das maiores referências da luta pelos direitos humanos no Brasil e no Mundo.
Em junho desse ano (2015), o hoje arcebispo emérito de São Paulo, foi internado após sofrer um mal súbito em Taboão da Serra, onde vive atualmente. Ficou 10 dias internado. Ficamos todos.
D. Paulo dedicou toda a sua vida em prol daqueles que precisavam. Mas, se tem uma coisa que ele nos ensinou é que existem lutas que são maiores do que uma vida, do que a nossa vida. Como D. Paulo respondeu certa vez a Belisário dos Santos, indagado sobre a possibilidade de se afastar da cena política para se proteger: “Eu não tenho tempo para pensar em mim mesmo”. Ainda temos muito que aprender com ele.
Adriano Diogo é geólogo sanitarista formado pela USP. Iniciou sua militância política em 1963. Participou da resistência à ditadura militar e da luta pela anistia e pelos direitos humanos. Foi eleito quatro vezes vereador de São Paulo. Atuou em defesa do meio ambiente, saúde pública, educação, moradia popular e regiões periféricas. É autor da Lei de Coleta Seletiva de Lixo e da Lei das Piscininhas do município (de combate às enchentes). Em 2002, elegeu-se deputado, licenciando-se da ALESP em 2003 para ser secretário municipal do Meio Ambiente de São Paulo. Em 2006, foi reeleito com 69.074 votos e, em 2010, com 77.924.
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