Essa é uma luta que passa pela reformulação do modelo estrutural do Judiciário, altamente rígido e hierárquico
Por
Marjorie Marona, na Carta Capital
Os
protestos que vêm eclodindo em todo o Brasil nas últimas semanas têm o mérito
(com um empurrãozinho da grande mídia, ávida por pautá-los) de trazer inúmeros
temas para a esfera pública. A grande mídia insiste em centrar imagens e falas
em torno de pautas genéricas e rótulos vazios – “sem partidos”, “não à
corrupção”, “fora Copa”, dentre outros. No entanto, quem esteve em pelo menos
uma dessas manifestações pode testemunhar uma espécie de “feira de propostas”,
muito mais amplas e difusas.
Com
seus vários cartazes, individualmente ou em pequenos grupos, manifestantes
pediam, sim, mais investimento em educação e saúde; bradavam, sim, por reforma
política e um controle mais rigoroso da corrupção. Mas não só. Diversos
movimentos sociais - que desde os primeiros protestos marcaram presença,
organizados sob faixas e bandeiras - apresentaram suas propostas: liberdade
sexual, direito ao próprio corpo, ações afirmativas, demarcação de terras
indígenas e quilombolas, além, é claro, da mobilidade urbana (onde tudo
começou).
Entretanto,
nem todos os temas chegaram a conformar a agenda política que resultou dessa
onda de manifestações. A presidenta Dilma Rousseff, em dois pronunciamentos,
reafirmou a agenda distributiva do Partido dos Trabalhadores (PT). Em um
primeiro momento, recolocou propostas que o governo tem tido dificuldades de
aprovar no âmbito do Congresso Nacional, invertendo estrategicamente os custos
políticos das manifestações nas ruas. Reafirmou a importância do projeto de lei
que previa a destinação de 100% dos recursos do petróleo para a educação e a
importância de contar com médicos vindos do exterior para ampliar o atendimento
do Sistema Único de Saúde. Inovou ao propor um Plano Nacional de Mobilidade
Urbana, articulando os governos federal, dos estados e prefeituras.
Em
um segundo momento, reafirmou a disposição que o então presidente Luiz Inácio
Lula da Siva havia demonstrado em 2009 ao encaminhar ao Congresso Nacional um
projeto de lei que tornava a corrupção dolosa crime hediondo e, talvez no ápice
da ousadia, propôs um plebiscito para convocação de uma assembleia constituinte
exclusiva pela reforma política.
A
tradição democrática do Partido dos Trabalhadores se reafirmava, então, pela
retomada de uma proposta que José Genoino havia apresentado ainda em 2008 na
Câmara dos Deputados.
Os
dois pronunciamentos fizeram muito bem aos ouvidos de esquerda. Não só porque
há muito tempo não se via o PT falar como PT, mas também porque a presidenta
foi capaz de conter (pelo menos por enquanto) os avanços conservadores da
oposição que, articulada pela grande mídia, visava à desestabilização do
governo pela reinterpretação das manifestações nas ruas.
Mas
é preciso ter clareza também acerca do que não avançamos. E não avançamos uma
linha no campo das demandas por reconhecimento.
Não
por acaso, a presidenta não dirigiu uma palavra acerca de diversas demandas
que, na carona dos reclames por mobilidade, exigiam um posicionamento do
governo acerca de projetos de lei que enfrentam de modo conservador às lutas
por reconhecimento, seja no campo da liberdade/diversidade sexual ou no que
toca ao direito ao próprio corpo, afirmado pelo movimento feminista.
Não
por acaso, a presidenta não dirigiu uma palavra acerca das ações afirmativas de
enfrentamento das desigualdades raciais, tais como o projeto de lei que prevê
cotas para negros/as em concursos públicos.
Não
por acaso, a presidenta não dirigiu uma palavra acerca da demarcação das terras
indígenas e demais direitos sonegados às comunidades quilombolas e outras
comunidades tradicionais.
Se a
presidenta politizou o debate do campo das políticas distributivas, tomou o
rumo contrário no que toca às políticas pautadas em uma agenda de
reconhecimento. Mas por quê? Seria, nesse tocante, a esquerda tão conservadora
quanto a direita? Não parece essa uma hipótese acertada se considerarmos a
ampliação das estruturas e dos espaços institucionais destinados à conformação
desse tipo de política. Basta que se observe que a Presidência da República é
constituída, desde 2003, dentre outras, por uma Secretaria-Geral que tem como
principal atribuição intermediar as relações do governo federal com as
entidades da sociedade civil, por uma Secretaria de Políticas para as Mulheres,
por uma Secretaria de Direitos Humanos e por uma Secretaria de Políticas de
Promoção da Igualdade Racial. Isso sem mencionar as conferências nacionais -
talvez a mais abrangente política participativa no Brasil, atualmente - que
contam com mais de vinte espaços referenciados a direitos de minorias.
Mas
então por quê?
Arriscaria
a hipótese de que os custos políticos (eleitorais) ligados à defesa de demandas
dessa natureza seguem altos, mesmo para um governo que nos últimos dias
sinalizou uma inflexão (maior) à esquerda. Nesse contexto, o sistema de justiça
de um modo geral, o Judiciário especialmente, e, mais pontualmente, o Supremo
Tribunal Federal - pelo exercício quase exclusivo do controle de
constitucionalidade das leis e atos normativos – reafirma o seu protagonismo no
processo de ampliação do acesso à justiça pela via dos direitos.
Na
verdade, boa parte daquelas questões, de algum modo, já passou pelo crivo dos
ministros da mais alta corte do país – demarcação de terras indígenas,
células-tronco embrionárias, aborto em caso anencefalia, cotas raciais nas
universidades – e outras tantas pelo juízo de outros magistrados, especialmente
às questões referentes ao casamento homoafetivo e as lutas quilombolas pela
terra/território. Mas aí a luta não é menos árdua. Houve avanços em alguns
pontos; entretanto, na maioria dos casos, o Judiciário simplesmente mostrou-se
despreparado para processar essas demandas, que afrontam a lógica liberal em
que assenta o judiciário em particular, e o sistema formal de justiça em geral.
O
fato é que, se é pra lá que os movimentos sociais devem continuar dirigindo
suas demandas, é bom que incluam na sua pauta uma demanda em particular, que
lhes deve ser transversal: a da ampliação e democratização do acesso ao sistema
formal de justiça.
Essa
é uma luta que passa pela reformulação do modelo estrutural do Judiciário em
particular, altamente rígido e hierárquico, mas também das Defensorias e do
Ministério Público; pela reformulação do processo de capacitação de seus
membros (juízes, defensores e promotores) para realidades plurais, diversas e
multiculturais; e pela reformulação do atual processo seletivo que, fundado em
uma lógica meritocrática e altamente dogmatizado, induz um perfil de operadores
que não espelha a diversidade de conhecimentos e experiências da sociedade
brasileira. E esse é só um começo de conversa.