Por Fabio Konder Comparato
Hipócrates, o Pai da Medicina, denominou krisis
o momento preciso em que o olhar experiente do médico observa uma
mudança súbita no estado do paciente, o instante em que se declaram
nitidamente os sintomas da moléstia, ensejando o diagnóstico e o
prognóstico.
Seremos capazes de fazer um juízo hipocrático da recente
piora apresentada no estado mórbido, no qual se encontra, há muito
tempo, a vida política brasileira? Creio que o diagnóstico deve ser
feito em razão da realidade substancial de nossa sociedade,
caracterizada pela estrutura de poder e pela mentalidade coletiva
predominante.
No Brasil, desde os tempos coloniais, o poder supremo
sempre pertenceu a dois grupos intimamente associados: os potentados
privados e os grandes agentes estatais. Cada um deles exerce um poder ao
mesmo tempo, em seu próprio benefício e complementar ao do outro. Os
agentes do Estado dispõem da competência oficial de mando. Os potentados
privados, da dominação econômica, agora acrescida do poder ideológico,
com base no controle dos principais veículos de comunicação de massa.
Trata-se da essência do regime capitalista, pois, como bem
advertiu o grande historiador francês Fernand Braudel, “o capitalismo
só triunfa quando se alia ao Estado; quando é o Estado”.
Quanto à mentalidade coletiva
predominante, isso é, o conjunto das convicções e preferências
valorativas que influenciam decisivamente o comportamento social, ela
foi entre nós moldada por quase quatro séculos de escravidão legal.
Essa herança maldita acarretou, em ambos os grupos
soberanos acima nomeados, um status de completa irresponsabilidade
política, pois desde sempre eles se acharam, tais como os senhores de
escravos, superiores à lei e isentos de todo controle.
De onde o fato de
a corrupção, nas altas esferas do poder público e no setor paraestatal,
ter sido até agora tacitamente aceita como costume consolidado e
irreformável.
Quanto às classes pobres, o longo passado escravocrata
nelas inculcou uma atitude de permanente submissão. O pobre não quer
exercer poder algum, prefere, antes, ser bem tratado pelos poderosos. Na
verdade, o conjunto dos pobres jamais teve consciência dos seus
direitos, por eles confundidos com favores recebidos dos que mandam.
No tocante à classe média, seus integrantes procuram
em regra atuar como clientes dos grandes empresários, proclamando-se, a
todo o tempo, defensores da lei e da ordem. Eles sempre desprezaram a
classe pobre, ou temeram sua ascensão na escala social.
Para completar esse triste quadro, e seguindo a velha
prática do mundo capitalista, nossos grupos dominantes aqui forjaram,
desde o início, uma duplicidade de ordenamentos jurídicos: o oficial e o
real. No Brasil colônia, as ordenações do rei de Portugal mereciam
respeito, mas não obediência. O direito efetivo era o que os
administradores oriundos da metrópole combinavam com os senhores de
engenho e grandes fazendeiros. A partir da Independência, as
Constituições aqui promulgadas seguiram o modelo dos países
culturalmente adiantados, para melhor dissimular a primitiva realidade
oligárquica, vigorante na prática.
A Constituição de 1988 não faz exceção à regra. Ela
declara solenemente, logo em seu primeiro artigo, que “todo poder emana
do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos, ou
diretamente”. Na prática, os ditos representantes do povo são eleitos,
em sua quase totalidade, mediante financiamento empresarial. E o
Congresso Nacional dispõe de competência exclusiva para “autorizar
referendo e convocar plebiscito” (art. 49, inciso XV). Ou seja, o povo
não exerce poder algum, nem direta nem indiretamente. Ele é simples
figurante no teatro político.
Acontece que no centro da organização oficial do Estado
brasileiro acha-se o seu chefe, isto é, o presidente da República. É de
sua habilidade pessoal que depende o funcionamento, sem sobressaltos,
desse sistema político de dupla face. Cabe-lhe manter, sob a aparência
de respeito à Constituição e às leis, um bom relacionamento com os
soberanos de fato, sem esquecer de agradar ao “povão”, dispensando-lhe
módicas benesses.
Foi o que fez brilhantemente Lula durante oito anos. E é o
que Dilma, por patente inabilidade, revelou-se incapaz de compreender e
realizar, numa fase de prolongado desfalecimento da economia, no Brasil
e no mundo. Ela entrou em choque com o Congresso Nacional,
desconsiderou o Supremo Tribunal Federal (até hoje não nomeou o sucessor
do Ministro Joaquim Barbosa, aposentado em 31 de julho de 2014) e
acabou por se indispor com o empresariado, a baixa classe média e até a classe pobre, ao implementar a política de ajuste fiscal.
E o PT no bojo dessa crise?
Ele revelou-se uma triste nulidade política, decepcionando
todos os que, como eu, se entusiasmaram com a sua fundação, em 1980. A
nulidade é bem demonstrada pela leitura de seu atual estatuto, aprovado
em 2013. Nele, por incrível que pareça, não há uma só palavra, ainda que
de simples retórica, sobre os objetivos do partido. Todo o seu conteúdo
diz respeito à organização interna, à qual, aliás, pode ser adotada por
qualquer outra legenda.
Se esse diagnóstico é acertado, o que se há de fazer
não é simplesmente aliviar a crise, mas atacar as causas profundas da
moléstia.
Para tanto, a via cirúrgica, do tipo impeachment da presidenta ou golpe militar, não só é ineficaz como deletéria.
O que nos compete é iniciar desde logo a terapêutica
adequada, consistente em quebrar a soberania oligárquica e reformar
nossa mentalidade coletiva. Tudo à luz dos princípios da República
(supremacia do bem comum do povo sobre os interesses particulares), da
democracia autêntica (soberania do povo, fundada em crescente igualdade
social), e do Estado de Direito, com o controle institucional de todos
os poderes, inclusive o do povo soberano.
Bem sei que se trata de caminho longo e difícil. Não se
pode esquecer que na vida política o essencial é fixar um objetivo claro
para o bem da comunidade, e lutar por ele. Não é deixar as coisas como
estão, para ver como ficam.