No dia 10 de dezembro de 2014 a
presidenta Dilma Rousseff recebeu em cerimônia aberta realizada no
Palácio do Planalto, na presença de alguns convidados e de muitos
jornalistas, o relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV).
O
documento, que consiste de milhares de páginas espalhadas em vários
volumes, oferece uma visão aprofundada da Ditadura Militar, das
estruturas repressivas e das atrocidades que cometeu. E elenca vinte e
nove recomendações ao Estado brasileiro, de medidas cuja finalidade é
sanar graves injustiças que ainda perduram no país, bem como suprimir
certas legislações e aparatos estatais que, herdados do período
ditatorial, continuam em vigor até hoje.
Um ano depois da entrega do relatório
final, cabe perguntar quais recomendações da CNV foram acatadas pelo
governo brasileiro, se as medidas sugeridas foram implantadas ao menos
parcialmente, se o Executivo passou a conceber em outros termos as
questões relativas à Memória, à Verdade e à Justiça. Porém, por
desgraça, não será preciso dissertar longamente a respeito. A dura
realidade é que o governo decidiu engavetar o relatório final da CNV e
fazer ouvidos moucos a tudo que a comissão recomendou. Como disse o
ministro Aloisio Mercadante, quando na Casa Civil: “Esse assunto já nos
criou muitos problemas”.
Retrocessos graves ocorreram de lá para
cá. Em maio de 2015, honras militares e de Estado foram prestadas à
memória do general Leônidas Pires Gonçalves — torturador identificado
como tal pela CNV — com a conivência do então ministro da Defesa,
Jacques Wagner. A Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da
República (SDH) perdeu seu status ministerial. A Câmara dos Deputados
prepara-se para votar novamente a “Lei Antiterrorismo”, proposta pelo
Executivo e que representa dura ameaça aos movimentos sociais. Por fim,
em paralelo a tudo isso, em diferentes pontos do Brasil as Polícias
Militares continuam a perpetrar chacinas em série, sem que o governo
federal se pronuncie a respeito.
Os fatos sucintamente relatados no
parágrafo anterior chocam-se com as recomendações da CNV, que constam da
Parte V, Capítulo 18 do Relatório Final. Basta uma simples leitura
dessas recomendações para entender que são medidas cruciais, condições
para a verdadeira democratização do nosso país. Contudo, o governo as
declarou natimortas, ainda no mandato anterior, por considerá-las
“problemas”. Por uma questão de espaço, citaremos apenas algumas, entre
as que nos parecem fundamentais:
— [1] “Reconhecimento, pelas Forças Armadas, de sua responsabilidade institucional pela ocorrência de graves violações de direitos humanos durante a Ditadura Militar (1964 a 1985)”. Medida autoexplicativa. Relatório final, p. 964.
— [2] “Determinação, pelos órgãos competentes, da responsabilidade jurídica.
– criminal, civil e administrativa – dos agentes públicos que deram causa às graves violações de direitos humanos ocorridas no período investigado pela CNV, afastando-se, em relação a esses agentes, a aplicação dos dispositivos concessivos de anistia inscritos nos artigos da Lei nº 6.683, de 28 de agosto de 1979, e em outras disposições constitucionais e
legais”. Trocando em miúdos, a CNV recomenda ao governo a anulação da
Lei da Anistia de 1979, de modo a fazer cessar a impunidade dos
torturadores, militares e civis. Ela cita expressamente, na
fundamentação dessa proposta, a decisão tomada pela Corte Interamericana
de Direitos Humanos (Corte IDH) sobre a matéria, em 2010, ao julgar
apelo referente aos desaparecidos da Guerrilha do Araguaia (“Caso
Lund”). Relatório final, p. 966.
—[12] “Dignificação do sistema prisional e do tratamento dado ao preso”. Proposta autoexplicativa. Relatório final, p. 969.
— [18] “Revogação da Lei de Segurança
Nacional” (LSN). A atual LSN, que é a Lei nº 7.170, de 14 de dezembro de
1983, reflete as concepções doutrinárias que prevaleceram no período
1964-1985. Relatório final, p. 971.
— [20] “Desmilitarização das polícias
militares estaduais”. Diz a CNV: “A atribuição de caráter militar às
polícias militares estaduais, bem como sua vinculação às Forças Armadas,
emanou de legislação da Ditadura Militar, que restou inalterada na
estruturação da atividade de segurança pública fixada na Constituição
brasileira de 1988. Essa anomalia vem perdurando [...]. Torna-se
necessário, portanto, promover as mudanças constitucionais e legais que
assegurem a desvinculação das polícias militares estaduais das Forças
Armadas e que acarretem a plena desmilitarização desses corpos
policiais, com a perspectiva de sua unificação em cada Estado”.
Relatório final, p. 971.
— [21] “Extinção da Justiça Militar
Estadual” e [22] “exclusão de civis da jurisdição da Justiça Militar
federal”. Explica a CNV: “A desmilitarização das polícias estaduais deve
implicar a completa extinção dos órgãos estaduais da Justiça Militar
ainda remanescentes. Reforma constitucional deve ser adotada com essa
finalidade, resultando na previsão unicamente da Justiça Militar
federal, cuja competência, conforme ressaltado no item subsequente,
deverá alcançar apenas os efetivos das Forças Armadas”. Relatório final,
p. 972.
— [26] “Estabelecimento de órgão
permanente com atribuição de dar continuidade às ações e recomendações
da CNV”. A comissão, que se extinguiu em dezembro de 2014, avalia que as
perspectivas abertas com seu trabalho e o grande volume de informações
colhidas “indicam a conveniência de estabelecimento de um órgão de
seguimento com funções administrativas, com membros nomeados pela Presidência da República, representativos da
sociedade civil, que, em sintonia com órgãos congêneres já existentes,
como o CNDH [Conselho Nacional dos Direitos Humanos], a CEMDP [Comissão
Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos] e a Comissão de Anistia,
deverá dar sequência à atividade desenvolvida pela CNV”. Relatório
final, p. 973.
— [27] “Prosseguimento das atividades voltadas à localização, identificação e entrega aos familiares ou pessoas legitimadas, para sepultamento digno,
dos restos mortais dos desaparecidos políticos”.
Proposta
autoexplicativa, sabendo-se que a imensa maioria dos desaparecidos
políticos permanece não localizada. Relatório final, p. 974.
— [29] “Prosseguimento e fortalecimento da política de localização e abertura
dos arquivos da Ditadura Militar”.
Salto de qualidade
As dez medidas ou iniciativas propostas
acima, caso adotadas pelo governo, representariam um salto de qualidade
em relação ao cenário atual, tanto no tocante à luta contra a impunidade
dos que cometeram crimes a serviço da Ditadura Militar, e à luta por
verdade e memória, quanto no enfrentamento e superação das gravíssimas
violações de direitos humanos que são praticadas cotidianamente:
extermínio de jovens negros e pobres, extermínio de povos indígenas,
violências policiais, torturas praticadas por agentes públicos e tantas
outras.
Uma das raras recomendações da CNV que
se materializaram no período foi a [25]: “Introdução da audiência de
custódia, para prevenção da prática da tortura e de prisão ilegal”. Um
passo notável, sem dúvida, mas totalmente insuficiente. A criação de um
órgão permanente para dar seguimento às investigações da CNV
(recomendação 26) chegou a ser aventada na antiga SDH, naufragando em
meio à recomposição ministerial e ao rebaixamento da pasta.
É uma tragédia que, em dezesseis anos de
mandatos democrático-populares, os governantes eleitos e seus ministros
tenham enxergado e conduzido a questão da Ditadura Militar e da chamada
“segurança pública” com os olhos da classe dominante.
A pequenez e a mediocridade dos que veem
apenas “problemas” no acerto de contas entre a sociedade brasileira e a
Ditadura Militar colocaram o Brasil na deplorável situação de
retardatário entre as nações da América Latina que buscaram rever o
passado. O Chile, não obstante a autoanistia dos militares, mantém
encarcerados mais de uma centena de altos oficiais implicados em crimes
durante a ditadura de Augusto Pinochet, e o ditador argentino general
Rafael Videla, genocida confesso, morreu preso.
Nós que lutamos por Memória, Verdade e
Justiça continuaremos batalhando para superar este estado de
pusilanimidade institucional e para que as recomendações da CNV sejam
cumpridas pelo governo. Continuaremos a exigir que as Forças Armadas
abram seus arquivos ao invés de sonegá-los e escamoteá-los.
Continuaremos denunciando e incomodando aqueles que se negam a exercer a
plenitude do poder civil. Continuaremos lutando pela punição dos que
cometeram crimes em nome e a serviço da Ditadura Militar e dos que
financiaram a repressão e as torturas.
Não haverá democracia no Brasil enquanto
não forem punidos os crimes da Ditadura Militar. E não é aceitável que,
a cada quatro anos, o horizonte dessa punição se torne mais distante do
que nunca. A cada mãe de desaparecido político que morre, somos
lembrados da enorme iniquidade que nos oprime e asfixia. Que parece
zombar de nós, a dizer: “Nada mudará! Os torturadores venceram ontem e
vencerão hoje e amanhã!”.
Pois estamos aqui para contestar. Para
dizer não à morte e à covardia. No Dia em que se comemoram os Direitos
Humanos, 10 de dezembro, estamos aqui para reafirmar: lutaremos, hoje e
sempre.
Não ao golpe!
Finalizávamos a redação deste artigo
quando se colocava em marcha, na Câmara dos Deputados, o início do
processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Merece nosso
integral repúdio a iniciativa do deputado Eduardo Cunha, presidente da
casa em vias de perder o mandato, de instaurar um processo claramente
golpista, sem fundamentação legal e totalmente ilegítimo.
Enxergamos entre os que propõem e
acalentam o impeachment os setores mais retrógrados das elites
brasileiras, derrotados na eleição de 2014 e que, interessados em
destruir direitos trabalhistas e conquistas democráticas da nossa
sociedade, chegam a flertar com o fascismo.
Portanto, nossas críticas ao governo não nos impedem de repelir o
golpismo espúrio que ameaça os avanços democráticos. Não ao golpe! Fora
Cunha!
Márcio Sotelo Felippe
Pedro Estevam da Rocha Pomar
José Luiz Del Roio
p/COMITÊ PAULISTA PELA MEMÓRIA, VERDADE E JUSTIÇA - CPMVJ
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