terça-feira, 11 de agosto de 2020

MORRE O BISPO DO POVO

 

Morreu, 8 de agosto, na cidade de Batatais (no interior do Estado de São Paulo), em decorrência da doença de Parkinson o bispo Pedro Casaldáliga, referência na luta pelos direitos humanos e contra a ditadura cívico-militar.

O bispo catalão tinha 92 anos e havia sido hospitalizado por problemas respiratórios em estado de saúde. E se incorporando no Brasil desde 1968 e sempre trabalhando com seus irmãos e irmãs pelos direitos dos camponeses sem terra e indígenas

Filho de camponeses da cidade catalã de Balsareny, claretiano e sacerdote ordenado na Espanha, Pedro Casaldáliga veio para o Brasil como missionário em 1968. Ele estava fugindo da Espanha franquista, mas desembarcou em um país que começava a viver os anos mais difíceis de sua ditadura militar (1964 – 1985). Ele se estabeleceu em São Félix do Araguaia, onde em 1971 foi nomeado o primeiro bispo da diocese local. O espanhol ilustre nunca retornou à sua terra natal por medo de deixar o Brasil e ser detido pelos militares de seu país em seu retorno.

Casaldáliga sempre acreditou que a Igreja tinha um forte papel social tornando-se um dos ícones da Teologia da Libertação. Sua pequena casa rural e pobre era a sede de sua diocese. Ele também não usava a batina tradicional usada pelos padres. Ele preferia jeans e chinelos, como as pessoas normais. Com esse estilo espartano, ele enfrentou a ditadura militar e também o setor mais conservador da Igreja Católica.

No Brasil, ele dedicou sua vida aos mais pobres e vulneráveis, especialmente aos camponeses sem terra e povos indígenas que habitam a Amazônia. Proprietários de terras locais poderosos o ameaçaram de morte em numeras ocasiões. Em outubro de 1976, após uma reunião de líderes locais e religiosos envolvidos na luta indígena, sofreu um ataque que resultou no assassinato do padre João Bosco Burnier. Casaldáliga estava ao seu lado durante o atentado criminoso.

Mas nem a perseguição da ditadura nem a ira do Vaticano, especialmente desde o papado de João Paulo II (1978-2005), o desencorajaram de promover dezenas de movimentos sociais na América Latina. Casaldáliga é um dos fundadores do Conselho Missionário Indígena (CIMI) e da Comissão Pastoral da Terra (CPT), duas das mais importantes entidades religiosas do Brasil. Ambas as organizações desempenharam um papel importante na transição democrática e na elaboração da Constituição de 1988, marco dos direitos sociais e indígenas no país.

Os conflitos com os setores mais poderosos não terminaram com o fim do regime militar. Ao contrário. Alguns duraram até anos recentes. Em 2012, quando tinha 84 anos e já sofria da doença de Parkinson, o prelado foi forçado a deixar sua casa em São Félix do Araguaia após receber ameaças de morte por sua defesa dos povos indígenas. As autoridades brasileiras o transferiram para um lugar desconhecido por meses diante das ameaças de colonos que ocupavam ilegalmente as terras dos Xavantes. Os tribunais brasileiros estavam prestes a concordar com o grupo indígena na disputa que tiveram com os invasores, o que, por sua vez, aumentou a violência na região.

Casaldáliga também passou por cinco processos de expulsão da Igreja. Eles nunca o nomearam cardeal. Em 2003, após completar 75 anos, idade em que os bispos devem disponibilizar a diocese ao papa, ele desafiou a instituição religiosa mais uma vez. O Vaticano imediatamente buscou sua substituição e foi atrás de um sucessor, exigindo que o prelado deixasse a cidade de São Félix antes da chegada do novo bispo. “Se o bispo que me sucede deseja continuar nosso trabalho de dedicação aos mais pobres, posso ficar com ele como sacerdote; caso contrário, procurarei outro lugar onde possa terminar meus dias próximos aos mais esquecidos“, insistiu ele.

Casaldáliga continuou seu trabalho até janeiro de 2005, quando Roma se manifestou novamente. Eles finalmente conseguiram um bispo para a diocese. Uma vez recebeu a exigência da Igreja de deixar a região. E mais uma vez o prelado recusou. Ele ficou trabalhando, com seu substituto e depois com o próximo. Sua morte em São Félix do Araguaia aconteceu como ele esperava: entre os pobres, entre os seus.

A última vez que Pedro Casaldáliga, o bispo do povo segundo seus numerosos partidários e o bispo vermelho para seus cáusticos inimigos, apareceu diante de uma multidão poucos esperavam vê-lo. Era julho de 2016 e não estava claro se dessa vez o religioso claretiano, de 88 anos, iria participar da Romaria dos Mártires da Caminhada, um evento quinquenal que ele criou em 1986, quando era bispo desta região selvática do Estado de Mato Grosso. A Romaria é realizada a 268 quilômetros de São Félix do Araguaia, o município onde ele vive, e não se sabia se agüentaria os incômodos de tamanha viagem. Mas havia aceitado a contragosto ir de avião, e não de ônibus, como até então costumava viajar pelo país (para ir, segundo suas palavras, "à altura do povo"), de modo que aí estava esse catalão, discretamente disposto a ver a cerimônia de inauguração. Banhado em aplausos e flashes de celulares, o morador espanhol mais célebre do Brasil não disse uma palavra. Em parte, pode-se imaginar, porque não tinha ido dar uma homilia; em parte, pelos estragos que foi causando em suas habilidades motoras o que ele chama de "o irmão Parkinson". Vendo-o, frágil, calado, prostrado em sua cadeira de rodas, qualquer coisa que tivesse dito teria soado como uma despedida.

Desde então, o mundo soube pouco dele, como ele do mundo. "A política local, a estatal ou a nacional, ele já não acompanhava muito", admite por telefone o padre Ivo, um dos quatro agostinianos que se organizam para atender nas 24 horas do dia o bispo emérito em sua casa de São Félix do Araguaia. Mantêm-no em forma com a rotina: cuidados físicos pela manhã e leitura do correio – eletrônico ou tradicional– pela tarde. "Não responde todas as mensagens porque já lhe custa muito falar, mas as pessoas as mandavam cheias de carinho, sem esperar uma resposta. São quase como uma deferência", acrescenta Ivo.

Assim, meio custodiado e meio mistificado, faz aniversário esta semana um dos homens espanhóis mais admirados do mundo católico. Em sua casa de sempre em São Félix do Araguaia, um município de pouco mais de 10.500 habitantes ao qual só se chega depois de 16 horas de estrada de terra desde o aeroporto mais próximo, o de Cuiabá, capital do Mato Grosso. Aqui se encontra este sacerdote de Montjuic desde que chegou ao Brasil como missionário em 1968, fugindo de uma Espanha congelada pelo franquismo. Em 1971 foi nomeado primeiro bispo da diocese e converteu sua casa, pequena, rural e pobre, na sede.

Foi entre essas quatro paredes que Casaldáliga começou a dar mostras de sua espetacular adesão aos ensinamentos do Evangelho, sobretudo o de se identificar com os mais desfavorecidos. E neste lado do Brasil selvático os mais desfavorecidos são centenas de milhares de camponeses sem-terra, pobres, analfabetos e oprimidos por coronéis e políticos. Assim, ele rezava missa para os moradores no quintal de sua casa, entre as galinhas, e à noite, deixava sua porta principal aberta para o caso de alguém sem casa precisar usar uma cama que sempre estava disponível. Andava de jeans e chinelos e tinha duas mudas de cada roupa. Quando tinha que se reunir com o Episcopado em Brasília, ia de ônibus, em uma viagem de três dias, porque era o meio de transporte de sua gente. Seu lema era inegociável: "Nada possuir, nada carregar, nada pedir, nada calar e, sobretudo, nada matar".

Anos depois se lembraria de como no início, em sua diocese, "faltava tudo: em saúde, educação, administração e justiça; faltava, sobretudo, no povo a consciência dos próprios direitos e a coragem e a possibilidade de reclamar". Decidiu que esse era o caminho a seguir. Construiu escolas, ambulatórios e se colocou ao lado dos camponeses sem-terra. Foi acusado repetidas vezes de interessar-se demais pelos problemas "materiais" dos pobres. Ele respondia que não concebia "a dicotomia entre evangelização e promoção humana".

Foi entre essas quatro paredes que Casaldáliga começou a dar mostras de sua espetacular adesão aos ensinamentos do Evangelho, sobretudo o de se identificar com os mais desfavorecidos. E neste lado do Brasil selvático os mais desfavorecidos são centenas de milhares de camponeses sem-terra, pobres, analfabetos e oprimidos por coronéis e políticos. Assim, ele rezava missa para os moradores no quintal de sua casa, entre as galinhas, e à noite, deixava sua porta principal aberta para o caso de alguém sem casa precisar usar uma cama que sempre estava disponível. Andava de jeans e chinelos e tinha duas mudas de cada roupa. Quando tinha que se reunir com o Episcopado em Brasília, ia de ônibus, em uma viagem de três dias, porque era o meio de transporte de sua gente. Seu lema era inegociável: "Nada possuir, nada carregar, nada pedir, nada calar e, sobretudo, nada matar".

Anos depois se lembraria de como no início, em sua diocese, "faltava tudo: em saúde, educação, administração e justiça; faltava, sobretudo, no povo a consciência dos próprios direitos e a coragem e a possibilidade de reclamar". Decidiu que esse era o caminho a seguir. Construiu escolas, ambulatórios e se colocou ao lado dos camponeses sem-terra. Foi acusado repetidas vezes de interessar-se demais pelos problemas "materiais" dos pobres. Ele respondia que não concebia "a dicotomia entre evangelização e promoção humana".

Essas idéias progressistas lhe renderam seguidores que o cultuavam nas ruas e um ódio desenfreado em várias instituições. Ele se posicionou em favor dos indígenas da Amazônia, que para os interessados em se enriquecer eram os mais fáceis de expulsar de cada território: aliou-se aos xavantes de Marãiwtsédé para retirar grandes produtores rurais de suas áreas e aos tapirapé e os carajá, e isto o levou a se confrontar com os latifundiários e as multinacionais e a ditadura militar. Viu como pistoleiros matavam seus companheiros–a conclusão habituais dos conflitos nesta região – e ele mesmo teve que viver escondido em um mês de 2012 por ameaças de morte. Rejeitou andar com escolta: "Eu a aceitarei quando for oferecida também a todos os camponeses de minha diocese ameaçados de morte como eu", disse.

O Vaticano o convocou em 1988 para que desse explicação por tanta proximidade da teologia da libertação e para que visitasse o Papa João Paulo II, como deveria ter feito uma vez a cada cinco anos, segundo o Código do Direito Canônico. Apresentou-se em camisa, sem anel e com um colar indígena no pescoço. Esclareceu ao Pontífice: "Estou disposto a dar minha vida por [São] Pedro [fundador da Igreja Católica], mas pelo Vaticano é outra coisa". Ao sair do encontro, fez um resumo à imprensa: "Me escutou e não me deu uma reprimenda. Poderia ter feito isso, como nós podemos também fazer com ele". E ponderou: "O Espírito Santo tem duas asas e a Igreja gosta mais de cortar a da esquerda".

Em 2003, Casaldáliga completou 75 anos, idade a partir da qual um bispo pode se aposentar. O Vaticano o substituiu de imediato. "Se o bispo que me suceder desejar seguir nosso trabalho de entrega aos mais pobres, eu poderia ficar com ele como sacerdote; do contrário, procurarei outro lugar onde possa terminar meus dias ao lado dos mais esquecidos", insistiu então. Se a pressa se devia a que fora fácil encontrar um substituto, não deram nenhuma indicação disso. Não voltaram a se manifestar até janeiro de 2005, quando anunciaram que já tinham substituto e que Casaldáliga deveria abandonar a diocese. Ele se negou e ficou trabalhando, com seu substituto e depois com o seguinte.

Pedro Casaldáliga faz 90 anos na casa de sempre e no município de sempre, mas o restante não é o de sempre. A região do Araguaia se transformou, entre escândalos políticos, em uma das principais áreas de plantações de soja do Mato Grosso: ou seja, parte das terras dos indígenas e dos camponeses está nas mãos das grandes produtores agrícolas e de seus produtos químicos. Talvez não se possa fazer nada contra isso. Casaldáliga perdeu essa batalha. Mas quando uma pessoa dedicou sua vida inteira à luta, ganhar ou perder é secundário.
 
Dermi Azevedo é jornalista, cientista político e escritor. É autor dos livros “Travessias Torturadas” e “Nenhum direito a menos”, graduado em Jornalismo pela UFRN (1979); Especialista em Relações Internacionais pela Fundação Escola de Sociologia e Política de SP (FSESP) com estudo sobre a política externa do Vaticano; Mestre em Ciência Política pela USP, com dissertação sobre o tema "Igreja e Ditadura Militar. Colaboração religiosa com a repressão de 1964”. Doutor em Ciência Política pela USP, com tese sobre “Igreja e Democracia. A democracia na igreja”, sob a orientação do Prof. Dr. Paulo Sérgio Pinheiro. É pai de Carlos Alexandre Azevedo, que foi preso político em 1974 com seus pais e foi torturado pelos policiais. Tinha apenas 1 ano e 8 meses e teve seus dentinhos quebrados pelos policiais ligados ao delegado Sérgio Fleury. Em fevereiro de 2013, Carlos cometeu suicídio com orvedose de medicamentos. E já vinha atribuindo seu sofrimento as seqüelas do crime que sofreu. É coordenador do Núcleo Maximiliano Kolbe de Direitos Humanos/NMK-SP.
 

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