sexta-feira, 6 de maio de 2016

NAUFRÁGIO INSTITUCIONAL



A Câmara dos Deputados e seu presidente, que no dia 17 de abril atentaram contra os 54 milhões de votos da presidente da República, foram obrigados ontem, dia 5 de maio, a engolir do mesmo veneno.

A Constituição da República, em seu art. 2°, estabelece que “são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. A doutrina democrática reconhece precedência ao poder político sobre o poder judiciário. Este é poder derivado, aquele é poder originado diretamente do voto popular.

Ao enumerar, em seu art. 55, as causas para a perda de mandato parlamentar, a Constituição aponta, entre outras, a “condenação criminal em sentença transitada em julgado”. Mas, na esteira do art. 2°, acrescenta que “a perda do mandato será decidida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal, por voto secreto e maioria absoluta, mediante provocação da respectiva Mesa ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa”.

Vem a propósito a lembrança de que, em 1968, a Câmara dos Deputados recusou licença, à ditadura, para processar o deputado Márcio Moreira Alves (o que deu lugar ao ato institucional n° 5). 

Pois bem, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, em sessão realizada ontem, dia 5 de maio, ao julgar medida cautelar proposta pela Procuradoria Geral da República, passando por cima da Constituição e dos votos obtidos pelo deputado Eduardo Cunha, determinou seu afastamento. Alguém dirá que foi mero “afastamento”, “suspensão”, e não perda do mandato. Mas trata-se sem dúvida de privação do mandato, hipótese que se inclui naquela previsão legal. 

Quando um juiz mal intencionado não encontra, na lei, norma incidente sobre o fato em julgamento, apela para um “princípio”. Como se não fosse, o princípio, característica da moral, e, a norma, característica do Direito. Como se não fosse o correto buscar, nos princípios jurídicos, elementos para interpretação das normas. Não encontrando, no ordenamento, uma norma que autorizasse o afastamento de Cunha, o ministro Teori Zavascki – relator da medida cautelar – a par do voto de três ministros, proferidos em outros casos e circunstâncias, invocou a analogia em matéria penal, mencionando hipóteses em que a lei prevê o afastamento da autoridade. 

Também outros ministros fizeram malabarismos retóricos para justificar seu voto. A ministra Carmen Lúcia sublinhou, como quem descobre a pólvora, que imunidade parlamentar não se confunde com impunidade parlamentar. O ministro Toffoli disse que se tratava de uma decisão “extraordinária”, “excepcionalíssima” (como se esses adjetivos não coubessem, primariamente, a decisões políticas). E o ministro Gilmar Mendes, reconhecendo implicitamente a falta de norma para fundamentar a decisão, mencionou uma pretensa “lacuna constitucional”. 

Alguém pode agora perguntar: você é a favor do Cunha? Respondo: estamos tratando de um julgamento, e todo julgamento deve decorrer segundo o devido processo legal. Se não quisermos abandonar o Estado democrático de Direito, devemos preservar essa garantia elementar.

Não tem Constituição o povo que não ama a sua Constituição.

Não respeita, a si própria, a Suprema Corte, se transgride a Constituição na qual se funda sua autoridade.

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