Da Associação Juízes para a Democracia
A Associação Juízes para a Democracia (AJD), entidade não governamental, de âmbito nacional, sem fins corporativos, que tem dentre seus objetivos estatutários o respeito aos valores próprios do Estado Democrático de Direito, tendo em vista propostas legislativas levadas à discussão e ações estatais realizadas, em nome do combate à corrupção, que afrontam os Direitos Fundamentais arduamente conquistados com a promulgação da Constituição da República de 1988, vem a público dizer que:
1.
A gradativa superação do regime ditatorial instaurado pelo Golpe de Estado de
1964 acabou por revelar à sociedade a prática de diversos atos de corrupção,
antes ocultos em favor dos detentores do poder político ou econômico, levados a
efeito por corporações e agente estatais, independente de partidos políticos e
das ideologias vigentes. Essas práticas ilícitas prejudicam a qualidade dos
serviços públicos e a concretização dos direitos individuais, coletivos e
difusos consagrados na Constituição da República, afetando a vida de toda a
população, especialmente dos estratos mais pobres.
2.
Todos os atos concretos de corrupção que têm sido revelados e provados ofendem
o Estado Democrático de Direito. A chamada "Operação Lava Jato", que
ocupa as sempre seletivas manchetes dos jornais brasileiros, é um claro
exemplo de uma ação que só poderia ter início no ambiente democrático, no qual
se respeitam a independência das instituições e a liberdade de expressão,
inclusive para que as respectivas qualidades sejam enaltecidas e os respectivos
erros, apontados. Vale, sempre, lembrar que ilegalidade não se combate com
ilegalidade e, em consequência, a defesa do Estado Democrático de Direito não
pode se dar às custas dos direitos e garantias fundamentais.
3.
O problema é que, tal como em outros momentos da História do Brasil, o combate
à corrupção tem ensejado a defesa de medidas e a efetiva prática de ações não
condizentes às liberdades públicas ínsitas ao regime democrático.
4.
Nesse sentido, têm-se que as chamadas “10 Medidas Contra a Corrupção”,
lançadas à discussão pelo Ministério Público Federal, não se mostram adequadas
à Constituição da República. A despeito da boa intenção envolvida, medidas como
a limitação ao uso do habeas corpus; a distorção da noção de
trânsito em julgado trazida pela figura do recurso protelatório (que, ao lado
da possibilidade de execução provisória da pena, fulmina o princípio do estado
de inocência); a relativização do princípio da proibição da prova ilícita; a
criação de tipos penais que, na prática, invertem o ônus da prova que deveria
caber à acusação; o desrespeito ao contraditório; a violação à vedação do
anonimato que se implementa com a possibilidade de fonte sigilosa; dentre
outras distorções democráticas defendidas no projeto de "iniciativa
popular" (porém, promovido e patrocinado por agentes estatais) trazem o
desalento de carregar, em si próprias, a corrupção do próprio sistema de
garantias constitucionais, com o agravante de que, sempre que se alimenta a
ideologia de que o Direito Penal é instrumento idôneo para sanar questões
estruturais complexas, acaba pagando o preço a destinatária habitual do
sistema: a população pobre e vulnerabilizada que lota as desumanas carceragens
espalhadas pelo país.
5.
No mesmo sentido, não se pode concordar com os shows midiáticos, promovidos em
cumprimentos de ordens de prisão e de condução coercitiva (efetivada ainda que
ausentes as situações previstas no artigo 260 do Código de
Processo Penal), na
mesma “Operação Lava Jato”. Tais
fatos dão visibilidade a fenômenos que sempre alcançaram as parcelas mais vulneráveis
da população brasileira: o desrespeito aos limites legais ao exercício do poder
penal, com a violação de direitos elementares, como a intimidade e a imagem. A
violação de direitos e garantias fundamentais, e isso vale para qualquer
cidadão (culpado ou inocente, rico ou pobre, petista ou tucano), só são comemoradas em sociedades que
ainda não foram capazes de construir uma cultura democrática, de respeito
à alteridade e ao projeto constitucional de vida digna para todos.
6.
Os atos concretos de corrupção no trato da coisa pública devem ser enfrentados
pelo aprofundamento – e não pela supressão – dos direitos democráticos
estampados constitucionalmente. A implementação de uma reforma política que
reduza a influência econômica nas eleições e nas ações cotidianas da
Administração Pública, a exigência de maior transparência na prática de atos
governamentais, o incentivo ao controle pela sociedade civil sobre todos os
Poderes de Estado (inclusive o Judiciário pela instituição de ouvidorias
externas aos tribunais[1]) e a consecução de plena autonomia
orçamentária desses mesmos Poderes e ainda de órgãos participantes da persecução
penal são algumas, dentre tantas outras, medidas que podem ser eficazes contra
o patrimonialismo, de origem colonial, que persiste no Brasil nas mais diversas
esferas estatais, em pleno século 21.
A
corrupção, por definição, consiste na “violação aos padrões normativos do
sistema”[2]. Assim sendo, a AJD espera que, por
imperativo lógico e ético, não se combata a corrupção com a disruptura do
próprio ordenamento jurídico, ainda mais se isso significar desrespeito a avanços
civilizatórios e democráticos arduamente conquistados e que hoje figuram na
Constituição da República sob a forma de direitos fundamentais, garantidos por
cláusula pétrea.
São
Paulo, 7 de Março de 2016.
A
Associação Juízes para a Democracia
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